Faz hoje 50 anos que o Muro de Berlim começou a ser construído. “Der Mauer” foi, durante 28 anos, uma lembrança demasiado real da divisão física provocada pela Guerra Fria. A Alemanha reunificada relembra o passado para sempre demasiado recente.
Imagine que, de um dia para outro, morando no Campo Pequeno, não podia visitar um irmão que habitasse no Campo Grande. A polícia colocou uma barreira de arame farpado entre as duas zonas e proibiu veículos e metros de viajarem entre os dois locais. Do outro lado só vê o irmão a acenar com um lenço e esta vai ser a única forma de contacto visual durante as próximas décadas. Já interiorizou o cenário? Já pensou no desgosto? Foi exactamente esta a imagem com que se depararam os berlinenses no dia 13 de Agosto de 1961.
Foi precisamente há 50 anos que um grupo de soldados da República Democrática Alemã (RDA) foi mobilizado para encerrar a fronteira. Começava assim a construção do Muro de Berlim. “Der Mauer” como é habitualmente referido pelos alemães.
“Niemand hat die Absicht, eine Mauer zu errichten!” (Ninguém tem a intenção de erigir um muro!), proclamava Walter Ulbricht líder da RDA no dia 15 de Junho de 1961. A afirmação tinha como objectivo tranquilizar os que viam indícios fortes que estava a ser preparada uma medida radical contra a saída da população em direcção a Berlim Ocidental.
Porém os responsáveis ocidentais sabiam que a divisão ia acontecer. Era inevitável que assim fosse, dada a sangria de população para o Ocidente, que já tinha recebido 3,5 milhões de alemães de Leste, correspondente a 20% da população. Mesmo assim, de tudo o que se imaginou que se pudesse passar, foram poucos os que conceberam que a solução residia na construção de um muro, literalmente.
Uma barreira de tijolo e cimento que enclausurou Berlim Ocidental e impediu a passagem da maioria dos cidadãos da parte Leste durante 28 anos.
Uma cidade dividida num país hostil
Após o término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, as potências vencedoras (EUA, França, Reino Unido e União Soviética) dividiram a vencida Alemanha em quatro grandes zonas de ocupação. Além disso partilharam igualmente a capital, Berlim – que se encontrava no interior da zona soviética -, em quatro áreas distintas, dada a enorme importância da cidade.
A administração da cidade devia processar-se de forma harmoniosa mas os desentendimentos revelaram-se desde muito cedo, levando rapidamente a um extremar de posições entre os soviéticos e os restantes países. Num período de três anos, as zonas ocidentais tinham-se unido numa só e Estaline respondeu, ordenando o bloqueio total de Berlim ocidental.
O alívio só chegou à população com a organização da maior ponte aérea da história, para transportar bens essenciais à sobrevivência dos habitantes do território isolado. Contudo, qualquer esperança imediata de reunificação estava eliminada. A separação entre as duas Alemanhas e as duas Berlins ia-se tornar oficial.
Em 1949 formam-se a RDA (leste) e a República Federal Alemã (RFA), com Berlim a situar-se em pleno coração da RDA. A situação fez com que Berlim Ocidental continuasse a fazer parte do território da RFA, mesmo estando separada do resto do país, enquanto Berlim Leste se tornou capital da RDA.
Diferenças nas duas Alemanhas para além do nome
Entretanto, cada lado acentuava as ideias distintas sobre as cidades. Os ocidentais ajudaram financeiramente a RFA e, consequentemente, Berlim Ocidental, no âmbito do Plano Marshall de reconstrução da Europa. O dinheiro canalizado permitiu um enorme crescimento financeiro sustentado, conhecido coloquialmente como Wirtschaftswunder (milagre económico) que tornou rapidamente a RFA num dos países mais desenvolvidos da Europa e um membro fundador da Comunidade Económica Europeia.
Por outro lado, a RDA sofria com as exigências soviéticas de compensações pelos danos causados durante a Guerra e via-se numa situação económica muito débil. A liderança comunista mostrava-se completamente submissa perante a União Soviética e, como tal, começou a introduzir medidas coletivistas que motivaram grandes protestos no lado leste.
A existência de uma cidade modelo capitalista mesmo ao lado, aumentava ainda mais o sentimento de revolta em Berlim. Para piorar a situação e, ao contrário do que acontecia no resto do país, onde toda a fronteira estava fechada e protegida desde 1952, em Berlim ainda era permitida a circulação entre os dois lados. Ou seja, Berlim era um destino óbvio para quem quisesse desertar para o bloco ocidental. O número de pessoas que fugiam para o outro lado estava a subir cada vez mais.
A classe dirigente (nomenklatura) comunista não podia tolerar mais a humilhação de um êxodo massivo à vista de todos. Os dirigentes soviéticos pressionaram e a RDA não teve outra solução. Teria, literalmente, de se construir um muro para impedir a passagem.
Famílias separadas da noite para o dia
Foi então no dia 13 de Agosto de 1961 que tudo se processou com a rapidez de um relâmpago. Os guardas chegaram nas primeiras horas da madrugada e montaram uma estrutura espessa de arame farpado na fronteira de Berlim Leste, circundando toda a área de Berlim Ocidental. Entretanto, chegaram os trabalhadores que prontamente começaram a construir o muro.
Os habitantes nas redondezas foram bruscamente acordados pelo barulho das ordens e pelo latido dos cães que se gerou à volta da zona onde se começou a preparar todo o processo. Os que ficavam no percurso do muro foram prontamente expulsos de casa para a demolição das habitações onde residiam.
Ao raiar do dia, a fronteira já estava fechada. Os habitantes de Leste que queriam seguir para o seu trabalho na parte ocidental viram-se impedidos pelos guardas de patrulha da RDA, as redes de transporte público que continuavam a servir os dois lados foram interrompidas, enfim, transformou-se efetivamente uma cidade com centenas de anos de história, em duas zonas completamente distintas. O Muro começava a tomar forma no panorama da cidade e na mente dos habitantes. Tudo tinha mudado.
Designado de Antifaschistischer Schutzwall (Barreira de Proteção Anti-Fascista) pelas autoridades comunistas, afirmando que o país tinha que se defender de uma futura agressão da RFA, o muro foi continuamente fortalecido pela Alemanha da Leste, que foi aumentando a presença militar da polícia da fronteira.
Em 1989, ano em que foi derrubado, o muro consistia numa fronteira de 43 km entre as duas cidades e 112 km à volta de Berlim Ocidental. Metralhadoras, sistemas de alarme mais sofisticados e torres de vigia, entre outros, foram instalados ao longo dos anos. Mais tarde construiu-se um “segundo muro”, criando um terreno entre as duas estruturas que passou a ser conhecido como a “faixa da morte”.
Havia nove pontos de passagem legais entre os dois lados, com o mais conhecido a ser o Checkpoint Charlie, o único que permitia a passagem a cidadãos estrangeiros e que, dada sua proeminência em muitas histórias de espionagem, se tornou um marco e um símbolo do muro e da cidade.
A medida mereceu condenação imediata das instâncias internacionais e da reação indignada e fervorosa dos aliados ocidentais. Contudo, os EUA e os seus parceiros estavam de mão atadas, uma vez que uma reação militar contra uma numericamente superior presença soviética redundaria numa derrota e num novo conflito militar.
Mas isso não impediu reações fortes contra o “Muro da Vergonha”. Uma das mais famosas terá sido, porventura, a do Presidente Kennedy que, numa visita efetuada a Berlim Ocidental a 26 de junho de 1963, proferiu a famosa frase “Ich Bin ein berliner” (eu sou berlinense) uma vez que, nas palavras de Kennedy, “todos os cidadãos livres, onde quer que vivam, são cidadãos de Berlim”.
Tentar fugir era o pior crime da RDA
A falta de ação efetiva dos dirigentes ocidentais perante a separação de Berlim foi severamente criticada pelo então presidente da Câmara de Berlim, Willy Brandt, que afirmou mesmo que, mais que palavras, a cidade queria “ação política”. Assim, perante o facto consumado da construção, aos cidadãos de Leste que não se resignavam a única solução era fugir. Quebrar a barreira.
A tentativa de passar o muro foi considerada na RDA como um dos crimes mais graves do país. Designado de Republickflucht (literalmente, voar para fora da república) era um assunto tabu na Alemanha de Leste e tratado como uma traição ao Estado e à sua população.
Os soldados responsáveis por patrulhar a fronteira entre as duas cidades tinham ordem expressa para utilizar todos os meios necessários sobre qualquer pessoa que fosse avistada a tentar atravessar para o outro lado (Schießbefehl – ordem para matar). Ainda assim, a coragem não deixou os berlinenses de Leste.
Apesar da morte, a resistência permanecia firme
Nos 28 anos de existência do Muro estima-se que cerca de cinco mil pessoas tenham conseguido atravessar a estrutura com sucesso. Nos primeiros dias de construção, quando em certas zonas ainda só havia arame farpado, eram tão simples como saltar de casas próximas da fronteira (sobretudo na Bernauer Straße, onde a estrutura se situava ao longo da rua), atravessar com um carro a alta velocidade ou, simplesmente, em zonas menos protegidas, correr e passar para o outro lado.
De todas as fugas com sucesso, uma é particularmente famosa. Foi a de Conrad Schumann, um guarda fronteiriço da RDA que, apenas três dias após o início da construção do Muro e respondendo aos populares ocidentais que gritavam “Komm rüber!” (atravessa!) decidiu instantaneamente correr e dar um salto por cima do arame farpado sendo de imediato protegido pela polícia da RFA. O momento foi captado pelo fotógrafo Peter Leibing, cuja foto se tornou num dos ícones da Guerra Fria.
Porém, a crescente militarização e sofisticação da estrutura obrigaram a métodos cada vez mais elaborados para conseguir passar. Ficaram famosos os longos túneis que serpenteavam a estrutura, as passagens em balões de ar quente, pessoas escondidas em compartimentos secretos nas malas de carros, tentativas de passar a nado através do rio Spree, enfim, as formas mais distintas para fugir à opressão. No entanto, o sucesso não apaga as mortes que o Muro provocou.
De acordo com estimativas do Centro de Pesquisa da História Contemporânea, em Potsdam, o número de mortes relacionadas com a tentativa de atravessar o Muro de Berlim ascende a 136. A primeira vítima foi Ida Siekmann que morreu no dia 22 de Agosto de 1961 (nove dias após o início da construção do Muro) ao tentar saltar de um terceiro andar na Bernauer Straße. Uma contagem que só terminou a 6 de Fevereiro de 1989, quando o balão de Chris Gueffroy se despenhou, tornando-o na última vitima do Muro.
Apesar dos marcos históricos que constituem estas mortes, a vítima mais tristemente famosa do Muro terá sido Peter Fechter, um trabalhador da construção civil de 18 anos que, a 17 de Agosto de 1962, tentou atravessar o muro a pé com um amigo. Quando descobertos pelos guardas de Leste foram atingidos com tiros mas, enquanto o amigo conseguiu atravessar, Peter ficou a esvair-se em sangue perto do lado ocidental.
Perante os gritos de dor do jovem nenhum dos lados atuou para o ajudar, com medo de provocarem um enorme incidente diplomático. O episódio mereceu uma extensa cobertura dos media e tornou-se uma triste lembrança das consequências do muro.
Um muro que era muito mais que tijolo e cimento
À medida que os anos passaram o muro foi-se tornando cada vez mais uma realidade que os berlinenses tinham que aceitar relutantemente. Mas o descontentamento continuava a ser expresso. Ficaram famosas as partes grafitadas do lado de Berlim Ocidental com símbolos provocativos e as estruturas elevadas que permitiam subir e ver Berlim Leste e a desoladora “zona de ninguém” entre as duas componentes do Muro.
Porém os berlinenses e o mundo ocidental não se resignaram enquanto o “Muro da Vergonha” não veio abaixo. “Mr. Gorbachev tear down this wall” (Mr. Gorbachev deite abaixo este muro) proferiu o Presidente americano Ronald Reagan a 12 de Junho de 1987, em frente às portas de Brandenburgo, um dos símbolos de Berlim que se encontrava no meio da “terra de ninguém”.
Tal só aconteceu em novembro de 1989 quando a RDA anunciou que todos os cidadãos eram livres de visitar o lado ocidental. O enorme fluxo que se seguiu teve como consequência o fim da RDA, a reunificação da Alemanha e o fim do muro. Milhares de pessoas levaram martelos e, antes da demolição oficial, começaram a destruir o muro. A opressão do cimento não aguentou a democracia popular da picareta.
Berlim vivia uma euforia imensa e um dos momentos mais marcantes da libertação foi talvez a encenação do concerto “The Wall”, por Roger Waters, que juntou uma das maiores multidões de sempre (perto de 350 mil pessoas) para um concerto numa área que tinha ficado deserta devido ao muro (Potsdamer Platz). A música enquanto símbolo de uma nova era e da destruição do muro físico e do muro mental.
Passados 50 anos da construção e 22 da destruição, o Muro, que durante tanto tempo foi um símbolo omnipresente da Guerra fria, parece uma memória distante e cada vez mais um souvenir turístico que se despe do seu significado histórico e da crueldade que implicou. Porém, o sofrimento desnecessário que causou não deixa de estar na memória de muitos.
É precisamente nesse espírito que amanhã toda a Alemanha e Berlim celebram a construção do Muro com inúmeros eventos artísticos e simbólicos. Para não deixar esquecer o sofrimento e relembrar os que morreram em busca da liberdade. Passados 50 anos as palavras de Kennedy fazem hoje particular sentido. No dia 13 de Agosto de 2011, todo o mundo livre é cidadão de Berlim.
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